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A História da Urologia e do Cálculo Urinário

Os Uroscopistas e suas matulas; a Roda da Uroscopia

Os Litotomistas

A primeira cistoscopia e o início da endourologia

 

 

Onde os nobres tratavam a litíase urinária na Renascença?

 

Imagine-se na seguinte situação: você é um nobre rico na França do século XVII. Um certo dia, você começa a sentir dores lancinantes na parte inferior do abdome. O simples ato de urinar torna-se um suplício, pois a urina sai com dificuldade e com dor intensa, às vezes com sangue. Depois de alguns dias, ocorre uma obstrução completa à saída da urina. O seu médico pessoal faz um diagnóstico terrível: você tem uma pedra na bexiga. Você percebe que está em maus lençóis. Sua única opção, à época, seria procurar os “litotomistas viajantes”, profissionais (não necessariamente médicos) especializados na arte cirúrgica de “cortar para extrair a pedra” (do grego lithos – pedra – e tomos – cortar).

O procedimento foi descrito pela primeira vez por Sushruta, um médico indiano, em textos datados de 600 a.C. a 600 d.C. Ele começou a ser utilizado na Antiguidade, sendo trazido à Europa por médicos gregos durante a campanha de Alexandre, o Grande, na Pérsia e na Índia. Portanto, realizado desde a Antiguidade, esse sangrento procedimento consistia no seguinte: o litotomista introduzia um dedo na bexiga do pobre paciente através de uma incisão no períneo (região entre o ânus e o escroto, no homem, e entre o ânus e a vulva, na mulher). Quando o cálculo era muito grande, antes era preciso fragmentá-lo, utilizando-se um instrumento chamado litotridor (litho – pedra – e tripsis – esmagamento ou trituração). Lembre-se: tudo isso seria feito sem anestesia. Além disso, a chance de morrer em consequência do procedimento era muito grande por sangramento e por infecção perineal. Os pacientes optavam pela litotomia como último recurso, já que não havia outra opção terapêutica para o cálculo de bexiga.

No famoso Hotel Dieu, o maior hospital de Paris no século XVII (os hospitais surgiram como albergues para acolher os pobres durante o inverno, por isso recebiam, na França, a designação de hotel; o termo hospital deriva do latino hospes, que significa hóspede), havia um famoso litotomista chamado Frei Jacques Beaulieu (1651-1714), que costumava tratar a realeza da corte de Luís XIV e era portador de um currículo com mais de 5 mil litotomias. Se você tivesse a doença, certamente gostaria de ser tratado por ele. Mesmo nas suas mãos experientes, a mortalidade parece que girava em torno de 40%. O cirurgião (que na verdade não era médico nem religioso; ele adicionou o título de Frei ao nome para ser mais respeitado) foi o responsável por desenvolver a chamada litotomia lateral, na qual a incisão é feita ao lado da linha média.

No século XVII, o holandês Jan de Doot retirou de si mesmo um cálculo de bexiga e imortalizou esse feito em uma pintura. Para a realização da litotomia na época, o paciente era colocado deitado de costas sobre uma mesa, com os joelhos e as coxas flexionadas, para que o litotomista pudesse ter acesso à região perineal. Apesar de o procedimento não ser mais realizado na atualidade, essa posição continua sendo chamada, no meio médico, de posição de litotomia

 

 

O que tem a ver o cálculo urinário com o cálculo da matemática?

 

Ora, tem tudo a ver. A palavra cálculo vem do latim calculus, que significa pedrinha. Em sociedades primitivas de várias culturas, os pastores de ovelhas costumavam definir o tamanho do rebanho pegando uma pedrinha para cada animal. Assim, ao final do dia, o número de ovelhas teria que corresponder ao número de pedras. Na Roma Antiga, o uso das pedrinhas para fazer contas ficou mais sofisticado. As pessoas usavam uma prancha cheia de areia (para poder desenhar números e figuras geométricas), sobre a qual colocavam as pedras para fazer contas. Esse instrumento era chamado de abacus (que também surgiu de maneira inde-pendente na Ásia e no Oriente Médio). Parece que ábaco vem do hebraico ábáq, que significa poeira.

Quando surge algum aglomerado mineral no corpo humano, também o chamamos de cálculo (pedrinha). Os locais mais comuns onde eles surgem são as vias urinárias (urolitíase) e a vesícula biliar (colelitíase). Os urologistas mantêm uma relação de ambiguidade com a urolitíase (cálculo urinário). A retirada de cálculos das vias urinárias talvez seja o procedimento mais realizado pelos urologistas. Apesar de o objetivo principal dos urologistas seja aliviar a dor de seus pacientes, não se pode negar que esse garimpo de cálculos urinários os ajuda a colocar comida na mesa.

 

 

Desde quando se conhecem os cálculos urinários?

 

As primeiras referências escritas sobre a litíase urinária datam de 3.200 a 1.200 a.C., em textos da antigas Mesopotâmia, Pérsia, China, Índia e Egito. Durante esse período, há registro do maior cálculo urinário, pesando mais de 1,36 kg. Algumas múmias, datadas de 5.000 a.C., apresentavam cálculos urinários. O arqueólogo inglês Edwin Smith, entretanto, relatou apenas 4 casos de cálculos urinários em milhares de múmias examinadas, o que sugere que a doença tinha baixa prevalência no Egito antigo (ou então ele não procurou com afinco, já que não era médico). A primeira descrição da cólica renal foi feita na Grécia Antiga, no livro Acerca

dos sofrimentos internos, de autor desconhecido, possibilitando assim, pela primeira vez a diferenciação entre a litíase renal e a litíase vesical, que passaram a ser descritas como doenças diferentes, gerando, portanto, tratamentos e prognósticos diferentes. O livro descreve a cólica renal como: “[...] dor aguda, tipo cólica, no flanco, a qual irradia para o abdome, testículo homolateral e pênis. Nos estádios precoces, queixa-se de urgência em urinar, mas, mais tarde, torna-se oligúrico e elimina areias e pedras com urina”.

 

 

O “pai da Medicina” tratava cálculos urinários?

 

Hipócrates (460-377 a.C.) tinha um conhecimento profundo sobre litíase urinária e foi quem descreveu pela primeira vez os sintomas clínicos dos cálculos de bexiga: dor à micção, passagem da urina gota a gota (em razão da obstrução do canal), urina manchada de sangue (decorrente da lesão da bexiga pelo cálculo), inflamação da bexiga e emissão de areias com a urina. O termo nefrolitíase teve origem no Corpus Hippocraticum (conjunto de textos atribuído ao médico grego) e é formado pelas palavras nephros (rim) e lithos (pedra).

Entretanto, procedimentos cirúrgicos para extração das pedras eram proibidos pelo juramento hipocrático, que dizia: “Eu não utilizarei a faca, nem mesmo para os sofredores pela pedra, mas deixarei tal tarefa para aqueles que fazem disso seu trabalho”. Os litotomistas, assim como os cirurgiões, tinham, na Grécia Antiga, um status social muito abaixo do que o dos médicos. Essa diferença social permaneceria até o século XIX.

Amônio de Alexandria (século III d.C.) foi a primeira pessoa a sugerir que a fragmentação do cálculo facilitaria a sua retirada. Ele estabilizava a pedra com um gancho e a partia usando um instrumento de ponta romba. Ele foi o criador do termo litotomia. O primeiro registro com detalhes da litotomia perineal foi feita por Cornelius Celsus (25 a.C.-40 d.C.), que viveu em Roma e escreveu a Enciclopédia de Medicina, muito utilizada durante toda a Idade Média até o Renascimento. Ele recomendava que a operação fosse realizada apenas em crianças e adolescentes, em virtude da consistência mais mole da próstata.

 

 

E então, doutor: meu xixi tem gosto de quê?

 

A uroscopia, inspeção da urina para determinar a condição física do paciente, é uma das ferramentas diagnósticas mais antigas. Sua utilização remonta à medicina praticada na Suméria e na Babilônia, cerca de 4000 anos atrás. Praticada por médicos gregos e romanos, a sua utilização chegou à Europa trazida pelos árabes e se tornou parte fundamental do diagnóstico clínico.

O termo uroscopia significa literalmente “observação da urina”. Há vários tratados antigos sobre o tema, mas o texto que teve mais influência na medicina ocidental foi escrito por Theophylus Protospatharius (610-641), chamado De Urinis. Por muitos séculos, autores de textos uroscópicos se referiram a esse texto.

A orientação era para que a urina fosse coletada em 24 horas em um frasco grande e transparente, que deveria ser protegido do calor, do frio e da luz do sol. Esse recipiente era chamado de “matula” e, durante a idade média, tornou-se um símbolo fortemente associado à profissão médica. Muitos médicos, quando contratavam os serviços de pintores para retratá-los, faziam questão de posar com sua matula (à semelhança de muitos médicos e estudantes de hoje em dia que publicam fotos nas redes sociais portando seus estetoscópios pendurados no pescoço).

O médico persa Ismail Sayn al-Din Gorgani (1040-1136) ensinava que os seguintes aspectos deviam ser sistematicamente verificados: a quantidade, a cor, a consistência, a transparência, a presença ou ausência de sedimentos (muito importante no diagnóstico de litíase urinária), a presença de sangue (hematúria), o odor e até o sabor da urina. Dessa prática nasceram as denominações de algumas doenças. Urina em grande quantidade e com sabor de mel, por exemplo, recebeu a denominação de diabetes mellitus. Urina em grande quantidade e sem gosto (que ocorre quando a pessoa não secreta adequadamente o hormônio antidiurético) foi chamada de diabetes insipidus.

Como referência, os profissionais utilizavam uma imagem muitas vezes reproduzida chamada de “A Roda da Uroscopia”, que trazia os diferentes aspectos que a urina poderia apresentar, com os diagnósticos correspondentes.

O ritual de analisar o líquido, entre os séculos XIV e XVI, tornou-se o ponto alto da consulta com um médico europeu. Enquanto o paciente aguardava nervosamente, o doutor alongava o quanto podia o processo de cheirar, olhar contra a luz e provar a urina (processo semelhante ao utilizado pelos enólogos), finalmente emitindo um diagnóstico.

Também à semelhança dos enólogos, alguns uroscopistas desenvolveram habilidades fantásticas. Conta-se a história da adolescente que foi levada à consulta pela mãe desconfiada, com suspeita de gravidez. A temerosa jovem misturou a própria urina com urina de vaca, no intuito de confundir o profissional e este, ao final da análise, declarou: “esta amostra tem urina de uma mulher e urina de vaca; ambas estão grávidas”.

O famoso médico persa Avicena (latinização de Abd Allāh ibn Sīnā) (980-1037) incluiu em sua influente obra “Cânone da Medicina” (texto padrão em muitas universidades medievais) uma seção que ensinava os médicos a diferenciar urina humana daquela de animais, alertando seus estudantes para o fato de que “…líquidos variados são às vezes trazidos pelos pacientes para testar a habilidade do médico”.

A partir dos séculos XII e XIII, a uroscopia passou a ser realizada também por pessoas sem treinamento médico, que viajavam pelas cidades europeias alardeando sua capacidade de fazer diagnósticos, prognósticos e até de prever o futuro (prática chamada de uromancia) da pessoa por meio da análise de sua urina. Alguns desses charlatães angariaram fama e riqueza.

Havia também aqueles médicos que até se abstinham de examinar o paciente, fazendo diagnósticos à distância somente pela observação da urina, que era trazida até ele por um portador especialmente contratado (poderíamos chamá-lo de pipiboy).

O médico de Constantinopla Joannes Actuarius (1275-1328) (obcecado pelo tema, escreveu um extenso tratado de sete volumes chamado “Sobre a Urina”) alertava para o perigo do diagnóstico feito com base apenas na análise da urina, sugerindo que o exame físico era fundamental (perigo que ronda também os médicos modernos, que às vezes se concentram nos exames complementares, em detrimento do contato com os pacientes).

O número crescente de pessoas sem treinamento médico (e sem escrúpulos) que realizavam a uroscopia condenou-a gradativamente a uma condição de descrédito. O livro publicado em 1637 “O Profeta do Mijo” (Pisse Prophet), de Thomas Brian, criticou duramente a prática. Os médicos vistos com uma matula passaram a ser objeto de piadas e do ridículo, o que ajudou a levar a prática da uroscopia, enfim, ao abandono.

Hoje em dia, a análise da urina é parte fundamental da avaliação clínica do paciente, tanto em doenças do trato urinário como em condições sistêmicas. O exame mais frequentemente utilizado é o chamado Urina Tipo I ou EAS (elementos anormais e sedimentoscopia), no qual se verifica: aspecto, cor, o pH, densidade, presença de células, etc. A presença ou ausência de glicose é verificada por uma análise química. Felizmente, não precisamos mais verificar o sabor do xixi. No caso da litíase urinária, o exame simples de urina pode fornecer pistas diretas, como a presença de minerais na urina (p.ex., oxalato de cálcio), ou pistas indiretas, como a presença de sangue (hematúria) e de infecção.

 

 

Cortar ou não cortar? Eis a questão.

 

O pai da Farmacologia, Pedânio Dioscorides, escreveu 5 livros intitulados De Materia Medica, descrevendo 12 plantas utilizadas no Império Romano para o tratamento de doenças renais. Durante a Idade Média, foi documentada a utilização da pedra judaica, uma substância de origem mineral muito utilizada como substância terapêutica, sendo utilizada também como diurético e atuando no tratamento médico não cirúrgico da nefrolitíase. Esse foi o passo inicial do uso de fitoterápicos no cálculo urinário.

 Já a litotomia, como visto, era um recurso utilizado em último caso, quando a dor provocada pelo cálculo de bexiga era insuportável. Por isso, qualquer ino-vação que a substituísse seria extremamente bem-vinda. Em 1835, um relato publicado pela Academia de Ciências de Paris viria a mudar o tratamento dos cálculos urinário para sempre. O médico Jean Civiale (1792-1876) demonstrou o enorme sucesso do tratamento feito com um instrumento desenvolvido por ele, batizado de litotridor. O novo invento permitia que ele esmagasse um cálculo na bexiga e o removesse através da uretra. Ele chamou a técnica de fragmentação do cálculo de litotripsia.

 Alguns anos depois, ele viria a relatar que teve uma certa dificuldade para aprender a utilizá-lo. Para melhorar sua habilidade com o instrumento, ele andava pelas ruas de Paris tentando fragmentar nozes dentro do bolso do seu casaco (lembre-se que o procedimento era feito às cegas). No trabalho, para enfatizar a superioridade de sua técnica, Civiale usou o interessante argumento de que “os próprios médicos, quando têm cálculos urinários, preferem a litotripsia à litotomia”. Mais importante ainda, ele realizou algo que à época era uma novidade: fez um estudo comparativo utilizando dados estatísticos. O médico compilou todas as operações feitas pelos proeminentes litotomistas da Europa à época e tabulou as suas taxas de mortalidade, que foi de 20% em um total 5.715 litotomias. Nas 257 litotripsias realizadas por ele, houve apenas 6 mortes (2,3%). Esse é um dos primeiros exemplos de um pesquisador que utilizou a chamada medicina baseada em evidências, tão em voga atualmente.

Então, em uma só tacada, ele foi triplamente pioneiro: desenvolveu uma técnica cirúrgica nova (litotripsia), utilizou a medicina baseada em evidências e iniciou a chamada cirurgia minimamente invasiva.

Outro aspecto que evoluiu muito entre os séculos XVII e XIX foi o entendimento da fisiologia dos cálculos urinários. Em 1776, o químico sueco Karl Wilhlem Scheele (1742-1785) identificou, nos cálculos urinários, um elemento até então desconhecido, que ele chamou de ácido lítico – mais tarde, esse elemento viria a ser conhecido como ácido úrico. Em 1820, a composição química da maioria dos cálculos urinários já havia sido analisada

Em 16 de outubro de 1846, a primeira operação realizada sob anestesia com éter foi feita em Boston, Massachusetts, mudando a história dos procedimentos urológicos para sempre. A dor durante as cirurgias havia ficado para trás.

Outra grande mudança foi a descoberta por Wilhelm Röentgen, em 1896, da propriedade de certa radiação eletromagnética (por desconhecê-la, ele a batizou de raios X) de atravessar os tecidos humanos e formar imagens em filmes radiográficos: surgia aí a radiografia. A partir de então, os médicos puderam “ver” o interior das pessoas, localizando cálculos cada vez menores e com maiores detalhes anatômicos. Em 1928, Moses Swick descreveu o primeiro contraste radiológico ao experimentar um novo antibiótico seletivo ao aparelho urinário, o uro selectan. A excreção desse remédio permitia visualizar totalmente o aparelho urinário ao raio X, sendo considerado o início da urografia excretora.

Em 1877, o urologista alemão Maximilian C. Nitze (1848-1906) inventou o primeiro cistoscópio, um aparelho que permitia ver o interior da bexiga, que ficou muito melhor depois que se acoplou uma grande invenção de Thomas Edison, a lâmpada elétrica. Tal aparelho facilitou imensamente o trabalho de fragmentar os cálculos dentro da bexiga, agora sob visão direta.

 

 

E a partir do século XX em diante?

 

Ernest Rupel e Robert Brown descreveram uma cirurgia realizada em 1941, na qual utilizaram um acesso renal percutâneo (nefrostomia) para visualização da via urinária renal (nefroscopia) e retirada de cálculo renal com sucesso. A partir desse relato, diversos outros autores iniciaram o uso da técnica até sua padronização. Em 1955, Goodwin realizou uma drenagem externa do rim (nefrostomia percutânea) para aliviar hidronefrose severa. Em 1976, Fernstrom e Johansson foram os pioneiros na punção, na dilatação e no tratamento da litíase renal por essa via.

Na década de 1950, uma tecnologia utilizada durante a Segunda Guerra Mun-dial, o Sonar, foi adaptada para uso em medicina, permitindo que se observasse o interior do organismo por meio de ondas sonoras de alta frequência (ultrassom). Surgia, assim, a ultrassonografia ou ecografia. Como o som se propaga melhor no meio líquido, tornou-se um método muito apropriado para a avaliação das doenças das vias urinárias, já que a função destas é exatamente transportar líquido (a urina).

A busca por métodos cada vez menos invasivos para o tratamento da urolitíase resultou no desenvolvimento de um método que parece saído de uma obra de ficção científica: a litotripsia extracorpórea por ondas de choque (LECO). A LECO consiste na fragmentação do cálculo por ondas de choques aplicadas externamente ao paciente. Em seguida, ocorre a eliminação dos fragmentos menores pelas vias urinárias do portador, não sendo necessário operar na grande maioria das vezes. Pelo fato de ser um procedimento não invasivo, a sua indicação é muito popular.

A sua descoberta, assim como muitas outras em Medicina, foi um tanto casual. Um engenheiro da empresa de aviação alemã Dornier, no início da década de 1960, percebeu que, quando uma aeronave supersônica estava em voo, as ondas de choque provocavam fadiga do metal. Para testar essa possibilidade, os engenheiros submeteram uma chapa metálica a ondas de choque. Ao tocar acidentalmente a chapa durante um dos testes, um deles levou uma espécie de choque. O Ministério da Defesa Nacional da então República Federal da Alemanha solicitou um estudo sobre os efeitos das ondas de choque em tecido animal (o objetivo inicial era produzir uma arma). Entretanto, logo perceberam que poderia haver um uso mais benéfico: fragmentar cálculos urinários sem a necessidade de cirurgia. Dornier foi a fabricante do primeiro litotridor por ondas de choque comercialmente disponível.

Ainda na Alemanha, Chaussy e colaboradores, em 1980, idealizaram a primeira geração de litotridores eletro-hidráulicos, denominada HM1 (de human machine), que funcionava com o paciente imerso em uma banheira. Em 1982, houve a primeira publicação a respeito do método, informando que, dos 221 pacientes tratados, 88,5% estavam livres de cálculos, um resultado inquestionável de sucesso. Depois, com a intenção de evitar complicações maiores, veio a segunda geração, com geradores piezoelétricos e eletromagnéticos mais compactos e com bolha de acoplamento, porém com resultados piores em relação à primeira geração. Os primeiros modelos chegaram ao Brasil em 1986, em Salvador, Bahia.

A primeira ureteroscopia foi realizada por Hugh H. Young em 1912, que utilizou um cistoscópio em um ureter dilatado em um paciente pediátrico com válvula de uretra posterior. Marshall, em 1964, deu os primeiros passos do ureteroscópio flexível, sendo difundido por Irving em 1982. Já Bagley e Huffman, em 1987, desenvolveram o mecanismo de deflexão e utilizaram um canal de irrigação para melhorar a instrumentação e as imagens, tornando-o não apenas parte do arsenal diagnóstico como procedimento terapêutico.

A drenagem da via urinária interna é feita pelo cateter duplo J. Esse dispositivo urológico foi idealizado por Gustav Simon no século XIX e desenvolvido por Finney em 1978, sendo considerado um dos maiores trunfos do sucesso da cirurgia urológica, evitando fístulas e estenoses graves.

A técnica cirúrgica mais usada atualmente é a ureterorrenolitotripsia, seguida de implante de duplo J. Essa técnica promove a quebra do cálculo enquanto no ure-ter ou no rim, com o auxílio de uma microcâmera. Consiste em um procedimento minimamente invasivo e com menos dor no pós-operatório, permitindo que seja cada vez mais comum a retirada e a eliminação das pedras, reduzindo o sofrimento de milhares de pacientes no mundo. Isso é possível graças aos avanços tecnológicos que temos vivenciado, permitindo a criação de instrumentos cada vez mais finos, que podem ser introduzidos através do canal urinário.

 

 

Tenho um cálculo urinário. Estou sozinho?

 

Claro que não! A prevalência de cálculos urinários varia de 1 a 20% da popula-ção e depende de fatores climáticos, étnicos, genéticos e nutricionais. Muita gente famosa já foi acometida pela doença e, em alguns casos, existem registros do sofri-mento delas. Alguns dos famosos que tiveram problemas com cálculos urinários foram: Epicurus, Erasmo de Rotterdam, Francis Bacon, Isaac Asimov, Galileo, Isaac Newton, William Osler, Benjamin Franklin, William Harvey, Papa Clemente XI, Luís XIV, Napoleão Bonaparte, Bruce Springsteen, Ava Gardner e o rei Pelé.

Um bom exemplo foi o Papa Inocêncio XI, cujos enormes cálculos renais ficaram registrados no livro de Tommaso Alghisi, o médico que realizou a sua necropsia 

Outro paciente famoso foi o caso de Henrique II, nobre rei da região alemã da Baviera, que morreu devido à litíase urinária. Em seu túmulo, localizado na catedral de Bamberg, uma escultura ilustra o episódio no qual São Benedito teria ajudado a extrair um cálculo da sua bexiga.

Durante sua campanha militar na Rússia, Napoleão Bonaparte sofreu imensamente com cálculos urinários. Há autores que defendem a ideia de que, se o imperador francês tivesse sido tratado com técnicas modernas, a história da Europa poderia ter sido bem diferente.

 

Por que é importante estudar a história da urolitíase?

 

A história da urolitíase é um exemplo fascinante de como a Medicina evolui de modo às vezes aleatório, sempre em busca de tratamentos melhores e menos dolorosos. Nos últimos cem anos, passamos de um tratamento cruento e doloroso, que era a litotomia, para procedimentos cirúrgicos que nem precisam de incisões.

A evolução técnica do diagnóstico e do tratamento dos casos de urolitíase foi verdadeiramente impressionante. Como disse o historiador grego Heródoto (485 a.C.-425 a.C.), pensar o passado é a melhor maneira de compreender o presente e idealizar o futuro. A pergunta que fica é: como será que, no futuro, trataremos os cálculos urinários?

 

 

Referências: 

 

FONTE: Texto extraído na íntegra do capítulo 25 do livro “Doutor, tem uma Pedra no meu Rim?”, de Bruno Vilalva Mestrinho

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